
22,5% do tempo da equipe.
Esse é o overhead de reuniões no Scrum, segundo análise publicada no Software Process and Measurement (2020). Mais de um quinto do tempo que você deveria estar programando é gasto em “cerimônias”.
E a maior dessas cerimônias? Sprint Planning. De 4 a 8 horas de reunião para “planejar” o que você vai fazer nas próximas duas semanas.
Mas aqui está o segredo que ninguém te conta: você não está planejando nada. Você está participando de um game show corporativo onde todas as portas levam ao mesmo lugar.
O Game Show Mais Caro do Mundo
Imagine um programa de auditório onde o apresentador te oferece três portas para escolher:
- Porta #1: Feature A (que o PO já priorizou)
- Porta #2: Feature B (que o negócio já aprovou)
- Porta #3: Feature C (que está no roadmap há 6 meses)
“Escolham, equipe! Vocês têm total liberdade!”
E você, como um concorrente entusiasmado, levanta a mão e grita: “Porta #2!”
O apresentador sorri: “Excelente escolha! Vocês ganharam… exatamente o que já estava planejado!”
Bem-vindos ao Sprint Planning: o game show onde a casa sempre ganha porque ela já decidiu todos os prêmios.
A Anatomia da Farsa
1. O Backlog “Refinado”
Antes mesmo de você entrar na sala, o jogo já foi decidido. O Product Owner passou semanas “refinando” o backlog. Tradução: organizando as cartas de forma que você pense que está escolhendo, mas todas as opções já foram pré-selecionadas.
É como um restaurante que te oferece um cardápio com 50 pratos, mas só tem ingredientes para fazer 3. Você pode “escolher” qualquer coisa, desde que seja uma das três opções que eles já decidiram.
2. A “Discussão” das User Stories
“Vamos discutir esta user story!”
E aí começa o teatro. O PO lê a história que ele mesmo escreveu. O Scrum Master pergunta se alguém tem dúvidas sobre algo que já foi decidido. Os desenvolvedores fazem perguntas sobre detalhes que serão “refinados” depois.
É uma discussão sobre um roteiro pré-escrito. É como atores ensaiando uma peça onde só um deles leu o script completo.
3. O Planning Poker: Cassino Corporativo
Ah, o planning poker. O momento mais ridículo de todo o processo.
“Quanto tempo vai levar para fazer isso?”
E aí todo mundo mostra uma carta com um número que inventou na hora. 5, 8, 13, 21. Fibonacci corporativo. Matemática mística.
“Por que você disse 8?” “Porque parece mais complexo que 5, mas menos que 13.”
É astrologia para desenvolvedores. É como tentar prever o futuro jogando dados, mas fingindo que é ciência.
4. A “Capacidade” da Equipe
“Nossa velocidade média é 42 story points por sprint.”
Baseado em quê? Nos números que vocês inventaram nas últimas sprints usando o mesmo sistema de adivinhação?
É como dizer: “Nossa capacidade de comer é 17 hambúrgueres por semana” baseado no fato de que na semana passada vocês “estimaram” que um hambúrguer vale 2,5 pontos de fome.
Os Dados Que Destroem a Ilusão
Estudos sobre Sprint Planning (Automation Panda, 2019) revelam a verdade brutal:
- Reuniões de 6-8 horas são comuns para sprints de 2 semanas
- Apenas 2 pessoas falam na maior parte do tempo (PO e quem está sendo interrogado)
- Story points são literalmente inventados - não medem tempo nem complexidade
- Estimativas estão sempre erradas - e a equipe se culpa na retrospectiva
E o pior: nenhum planejamento real acontece. São “reuniões de adivinhação” disfarçadas de planejamento.
O Custo Real da Ilusão
Vamos fazer as contas:
- Equipe de 7 pessoas
- Sprint Planning de 4 horas
- Salário médio de R$ 8.000/mês (R$ 50/hora)
Custo por Sprint Planning: R$ 1.400 Custo anual: R$ 36.400
Trinta e seis mil reais por ano para fingir que vocês estão escolhendo o que já foi decidido.
A Psicologia da Pseudo-Participação
Por que as empresas mantêm essa farsa? Porque funciona.
Quando você “participa” da decisão, você se sente responsável pelo resultado. Mesmo que sua participação seja escolher entre opções pré-selecionadas.
É o mesmo princípio usado em ditaduras que fazem “eleições” com candidato único. A ilusão de escolha cria a sensação de legitimidade.
No Sprint Planning, você não está escolhendo o que fazer. Você está escolhendo como aceitar o que já foi decidido.
Os Sintomas da Ilusão de Escolha
Você está num Sprint Planning de mentira se:
- As user stories já estão “prontas” antes da reunião
- O PO já sabe exatamente o que quer de cada história
- As “discussões” são apenas esclarecimentos sobre decisões já tomadas
- Você nunca questiona se uma feature deveria existir
- As estimativas são aceitas independente do valor
- O backlog está “travado” há semanas
Se você se identificou com 4 ou mais itens, parabéns. Você está oficialmente participando de teatro corporativo.
A Verdade Sobre “Planejamento”
Planejamento real envolve:
- Decidir o que fazer (não apenas como fazer)
- Questionar prioridades (não apenas aceitar)
- Avaliar alternativas (não apenas estimar)
- Definir critérios de sucesso (não apenas acceptance criteria)
Sprint Planning envolve:
- Aceitar o que já foi decidido
- Estimar trabalho pré-definido
- Fingir que você tem escolha
- Assumir responsabilidade por decisões alheias
A diferença é a mesma entre ser arquiteto e ser pedreiro. Ambos são importantes, mas só um deles decide o que vai ser construído.
O Experimento da Honestidade
Quer testar se seu Sprint Planning é real ou teatro? Faça este experimento:
Na próxima reunião, quando o PO apresentar uma user story, pergunte:
- “Por que essa feature é importante?”
- “Qual problema ela resolve?”
- “Como vamos medir se funcionou?”
- “Existe uma alternativa mais simples?”
- “E se não fizermos isso?”
Se essas perguntas causarem desconforto, se o PO disser “isso já foi decidido”, se você for redirecionado para “como implementar”, então você confirmou: não é planejamento, é teatro.
A Resistência Silenciosa
Mas nem todo mundo comprou a narrativa. Existe uma resistência crescendo.
São os desenvolvedores que:
- Fazem as perguntas difíceis durante o planning
- Questionam prioridades em vez de apenas estimar
- Propõem alternativas técnicas que mudam o escopo
- Recusam-se a estimar trabalho mal definido
Eles são rotulados como “não colaborativos” ou “resistentes ao processo”. Mas eles são os únicos que ainda tentam fazer planejamento real.
Como Quebrar a Ilusão
1. Pare de Fingir que Está Escolhendo
Se o backlog já está decidido, admita. Não finja que está “planejando” quando está apenas executando.
2. Questione Tudo
Por que essa feature? Por que agora? Por que assim? Se você não pode questionar, você não está planejando.
3. Recuse Estimativas Sem Contexto
“Quanto tempo vai levar?” “Para fazer o quê, exatamente? Para resolver qual problema? Com qual critério de sucesso?“
4. Proponha Alternativas
“Em vez de fazer isso, que tal fazermos aquilo?” Se a resposta for sempre “não”, você não está numa reunião de planejamento.
5. Meça Resultados, Não Pontos
Story points não medem nada útil. Meça se a feature resolveu o problema que deveria resolver.
A Hora da Verdade
Se você chegou até aqui e está pensando “mas meu Sprint Planning é diferente”, faça este teste final:
Amanhã, em vez de aceitar o backlog como está, proponha uma ordem completamente diferente baseada no que você acha mais importante tecnicamente.
Se isso for aceito e discutido, você tem planejamento real. Se isso for rejeitado ou ignorado, você tem teatro corporativo.
A verdade é que a maioria das empresas não quer planejamento real. Elas querem execução previsível disfarçada de participação democrática.
É mais fácil gerenciar pessoas que acreditam que estão escolhendo do que pessoas que sabem que estão apenas obedecendo.
Quebrando o Game Show
Planejamento real não é algo que a empresa te dá. É algo que você toma.
Pare de aceitar user stories como mandamentos divinos. Pare de estimar trabalho que você não entende. Pare de fingir que escolher entre opções pré-selecionadas é autonomia.
Você não é um concorrente num game show corporativo. Você não é um ator num teatro de planejamento. Você não é uma máquina de estimar pontos inventados.
Você é um desenvolvedor. E desenvolvedores resolvem problemas, tomam decisões técnicas, e criam soluções.
Não dentro de um game show rigged. Não seguindo um roteiro pré-escrito. Não fingindo que está escolhendo quando tudo já foi decidido.
Mas com planejamento real. Com decisões reais. Com escolhas reais.
É hora de sair do palco e entrar na sala de planejamento de verdade.
Este artigo faz parte da série O Ilusionismo Ágil - uma análise brutal sobre como o Agile se tornou o maior obstáculo à inovação tecnológica. Leia os outros artigos da série:
- O Manifesto Ágil: Como Caras Bem Intencionados Viraram Escudo Corporativo
- O Teatro dos Sprints: Ritual, Controle e Burnout com Cheiro de Post-it
- Scrum Master: O Capataz de Tênis e Jira
- Como o Agile Condicionou uma Geração a Obedecer Sorrindo
- Falsa Autonomia no Agile: Por Que Equipes Autônomas São Microgerenciadas
- O Custo Psicológico da Entrega Contínua
- Por que o Agile Só Sobrevive em TI (e Mesmo Assim Fracassa)
- Por Que Hackers Rejeitam Agile: A Rebelião Técnica na Indústria de Software
E se você quer o manual completo da resistência, baixe Agile: A Mentira da Indústria de Software. É hora de parar de fingir que essa palhaçada funciona.
A liberdade tolerada não é liberdade.
É controle com UX bonito.
GhostInit0x continua transmitindo.