Você confiaria sua vida a um cirurgião que nunca operou ninguém? Que entra na sala de cirurgia com um terno caro, fala com firmeza, apresenta slides coloridos e usa palavras como “sinergia” e “alinhamento estratégico”? Ele não sabe onde fica o coração. Nunca segurou um bisturi. Mas tem a confiança de quem já fechou dezenas de rodadas com o board. No mundo real, esse cenário seria um absurdo. No mundo corporativo, é rotina.
Ser executivo não exige ser um cuzão, mas o sistema recompensa quem age como um. Você sobe prometendo resultados impossíveis, recebe aplausos, bônus e visibilidade. Depois, transfere toda a pressão para a equipe. A fórmula é simples: performar segurança, parecer ocupado, evitar qualquer demonstração de dúvida. Não saber algo virou imperdoável. Assumir erro, então, é suicídio político. O jogo é sobre imagem — não sobre verdade, nem sobre responsabilidade.
O executivo médio não conhece o produto que sua equipe constrói, não entende o que o time faz, e acha que nem precisa entender. Sua função se resume a reuniões intermináveis, onde distribui promessas sem nenhum compromisso técnico com a realidade. O time, por sua vez, descobre tudo em uma call de 15 minutos: “Precisamos entregar 30% a mais, com menos gente e menos orçamento.” Questionar esse delírio? Vira alvo. Ser crítico é ser “desalinhado”. Ser realista é “falta de atitude”. O que sobra é a obediência anestesiada, muitas vezes por medo, muitas vezes por cansaço.
A cultura corporativa não valoriza quem constrói, mas quem promete. Não promove quem entende, mas quem projeta confiança. Os que levantam a mão para dizer “isso não faz sentido” são silenciados, isolados ou demitidos. Os que se calam sobrevivem, mas à custa da própria saúde, propósito e dignidade. Quando o resultado não vem, o culpado é o mercado, a equipe, a concorrência. Quando dá certo, o mérito é exclusivo do “líder”.
Na indústria de tecnologia, isso é ainda mais visível. Viramos fábrica de modinhas vendidas por PowerPoint: a nuvem como salvação universal, o DevOps como religião, microserviços como regra, transformação ágil como mantra, metaverso como inevitabilidade, IA como messias. Essas decisões vêm de cima, sempre embaladas em jargões e metas descoladas da realidade. Quem impulsiona essas ondas? Os mesmos executivos que não sabem programar, não entendem arquitetura, mas têm bônus atrelado à adoção dessas buzzwords.
Enquanto isso, quem constrói de verdade — desenvolvedores, analistas, designers — grita por ajuda. Mas a decisão sobe cega, surda e triunfante. Porque questionar um executivo é perigoso. Porque recusar uma ordem insana é motivo para ser rotulado de “resistente à mudança”. Porque pedir contexto virou heresia. Assim, o ciclo se mantém: executivos deliram, times obedecem, produtos são lançados sem propósito, falham, e são rapidamente rebatizados em um novo “reposicionamento estratégico”.
Voltemos à metáfora do cirurgião. A cirurgia dá errado: demissões em massa. O paciente não reage bem: times exaustos, projetos abandonados, burnout generalizado. A família — o board — pergunta o que houve: “Foram circunstâncias externas. Fizemos o nosso melhor.” E todos aceitam, porque é mais fácil manter o jogo do que assumir que estamos entregando o bisturi na mão de quem nunca cortou.
A cultura corporativa matou o senso crítico com metas arbitrárias, jargões ocos e uma estrutura hierárquica que premia quem mente bem. Hoje, basta um executivo dizer que vai cortar 30% da equipe para “aumentar a eficiência” que todos acenam com a cabeça, mesmo que ele não saiba o que o time faz, mesmo que não haja dados que sustentem a decisão, mesmo que isso destrua o produto. Não importa. O importante é parecer que há um plano.
E tudo se repete: volta ao escritório, adoção apressada de IA, metas exponenciais com times reduzidos. Comando, obediência, desastre, rebranding, promoção. A liderança nunca é responsabilizada. A base sempre paga a conta. A anestesia coletiva se renova. O teatro continua.
Esse texto não é contra um executivo específico. É contra um modelo de liderança baseado em ego, vaidade e blefe. Um sistema que recompensa a performance do poder, e não a responsabilidade sobre ele. Um sistema onde quem constrói é descartável, e quem compromete a operação com decisões delirantes é premiado.
Chega. Não aceito mais ser operado por quem não sabe cortar. Não aceito trabalhar para quem não entende o que pede. Não aceito obedecer ordens de quem nunca construiu nada real. Chega de aplaudir quem mente bem. Chega de proteger incompetentes carismáticos. Chega de aceitar como normal o absurdo.
Eu não estou anestesiado, eu estou fora!
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