A engenharia de software está sendo executada em plena luz do dia, e os assassinos usam crachá de executivo e terno de consultoria. O crime? Vender ilusão com a embalagem de “inteligência artificial”. Transformação digital virou show de slide. GPT virou desenvolvedor. E quem questiona é taxado de obsoleto.
Presenciei recentemente uma dessas execuções. Uma consultoria criou uma “AI revolucionária” com nome pomposo e marketing agressivo. Por trás da fachada? Um simples wrapper que manda prompts para o GPT-4 pedindo para gerar testes unitários. Vendem isso como “agilidade máxima no desenvolvimento”, prometendo testes em menos de um minuto. Preço: centenas de milhares de reais anuais.
A realidade técnica é brutalmente simples: um script de 50 linhas em Python faria exatamente a mesma coisa. Conectar à API do OpenAI, enviar código como prompt, receber testes, formatar saída. Custo real de desenvolvimento: algumas horas de estagiário. Custo de venda: meio milhão por ano.
Mas a genialidade diabólica está na embalagem. Não vendem um script. Vendem uma “plataforma de inteligência artificial para aceleração de desenvolvimento”. Criam dashboards com métricas impressionantes: “Redução de 90% no tempo de criação de testes”, “ROI de 500% no primeiro ano”. Números que impressionam em apresentações, mas se dissolvem na realidade técnica.
A Psicologia da Venda de Ilusões
As consultorias descobriram a fórmula perfeita: pegam meia dúzia de APIs, colam um front com cara de dashboard e vendem como revolução. O cliente acredita. O executivo assina. O sistema afunda. E quando quebra, quem paga a conta é o time técnico ignorado desde o início.
Executivo não quer engenharia. Quer narrativa. Quer economia de headcount. Quer dizer no LinkedIn que “implementou IA em escala”. Mesmo que por baixo da camada de hype esteja um Frankenstein que ninguém entende, que ninguém audita, que ninguém sustenta.
Eles não estão comprando tecnologia. Estão comprando status e a ilusão de que podem pular etapas fundamentais do desenvolvimento. Querem acreditar na bala de prata que vai resolver décadas de débito técnico com um clique.
A Economia Perversa do Hype
Vamos fazer as contas reais:
Custo de desenvolvimento do wrapper:
- Script + interface + deploy: R$ 32.000
Preço de venda da consultoria:
- Licença anual: R$ 500.000
- Implementação: R$ 200.000
- Suporte: R$ 100.000
- Manutenção: R$ 150.000
Margem de lucro: 2.968%
Essa não é margem de lucro. É extorsão legalizada, sustentada pela ignorância técnica dos compradores. Se o executivo soubesse que está pagando quase um milhão por algo que custa R$ 32.000 para desenvolver, obviamente não faria o negócio.
O Truque Mais Sujo
A IA pode ser uma ferramenta brutalmente eficiente, mas não pensa. Não entende contexto. Não avalia trade-off. Não segura bug de madrugada. A confusão proposital entre assistente e arquiteto é o truque mais sujo dessa nova onda.
O GPT-4 é uma ferramenta extraordinária para desenvolvedores experientes. Mas vendê-lo como solução completa é como vender um martelo prometendo que ele vai construir uma casa sozinho. A ferramenta é útil, mas você ainda precisa do arquiteto, do engenheiro, do mestre de obras, do pedreiro.
No caso dos testes unitários, o GPT pode gerar código rapidamente. Mas não pode entender requisitos de negócio, identificar casos extremos do domínio, avaliar qualidade arquitetural, ou manter consistência com padrões organizacionais. Essas não são limitações que serão corrigidas na próxima versão. São limitações fundamentais de qualquer sistema baseado em processamento estatístico de texto.
O Custo Humano Real
Esses mesmos executivos, que nunca mantiveram um sistema em produção, agora ditam como software deve ser construído. O que vale não é mais o que funciona, é o que impressiona. O mérito não está no código, mas na narrativa vendida no comitê. A engenharia morreu sufocada sob a pilha de decks e jargões vazios.
Imagine ser um desenvolvedor sênior obrigado a usar uma ferramenta de “IA” que gera testes piores do que você escreveria em metade do tempo. Imagine ter que explicar por que os testes automatizados não capturam bugs óbvios, ouvindo: “Mas a consultoria disse que IA é mais eficiente que humanos.”
Quando essas “soluções” inevitavelmente falham, quem leva a culpa não são os executivos que decidiram ou as consultorias que venderam. São os desenvolvedores, acusados de “resistir à inovação”.
A Resistência Necessária
Se você ainda leva a engenharia a sério, pare de aceitar essa palhaçada. Comece a expor as falácias. Questione cada proposta “disruptiva” que ignora as bases do sistema. Chame pelo nome: charlatanismo tecnológico.
Quando alguém propor uma “solução de IA”, faça as perguntas certas:
- Como lida com código legado e dependências complexas?
- Qual a taxa de falsos positivos dos resultados gerados?
- Qual o custo total incluindo manutenção e vendor lock-in?
- Existem alternativas open source equivalentes?
Essas perguntas vão rapidamente expor as limitações das soluções vendidas pelas consultorias.
A Escolha Final
A pergunta que define quem você é na indústria hoje é simples: você está construindo sistemas ou participando de um teatro? Porque no fim, quando o hype passar (e vai passar), o que sobra é o código que você escreveu, o sistema que você sustentou, e o estrago causado por quem terceirizou responsabilidade pra uma API.
O futuro da engenharia não está nas “soluções de IA” das consultorias. Está na aplicação inteligente de ferramentas de IA por profissionais que entendem tanto as capacidades quanto as limitações dessas tecnologias. No final das contas, cada linha de código que você escreve é um voto sobre que tipo de indústria você quer ter. Um voto sobre se você acredita em competência técnica ou em narrativas de marketing.
O charlatanismo só prospera porque encontra terreno fértil na ignorância. Ele morre quando confrontado com rigor técnico e profissionais que se recusam a participar do teatro.
A escolha é sua.
A liberdade tolerada não é liberdade.
É controle com UX bonito.
GhostInit0x continua transmitindo.