Todo mês é o mesmo ritual. Você já atualizou o Jira, participou da daily, entregou a sprint, alimentou o board, deu update no status, atualizou a task no sistema, passou pelo grooming, ouviu o Scrum Master repetir o que você acabou de dizer, ouviu o PO perguntar “quando entrega”, e ainda assim, no fim do mês, vem o aviso no Slack: “Favor preencher a planilha de horas até às 17h.”
Mas… se tudo já foi registrado, se o Scrum Master acompanha cada detalhe, se o board está atualizado e a sprint foi entregue, pra quê mais esse controle?
O Dev-Contador
No mundo corporativo ágil, o desenvolvedor virou também contador da própria rotina. E não é força de expressão. É ele quem precisa abrir um sistema ou um Excel, lembrar tudo o que fez nas últimas quatro semanas, adivinhar qual código de atividade usar, estimar o tempo gasto por tarefa, inventar uma granularidade que agrade o RH e preencher campos que ninguém nunca vai ler — mas que, se faltar, vai gerar cobrança.
Estamos sendo sufocados por uma agilidade que exige entrega, visibilidade, transparência… e redundância. É como se a confiança fosse só um slogan bonito pra post de LinkedIn. Porque, na prática, o sistema te exige produtividade — e também comprovação minuciosa dela. Se o processo ágil registra tudo em tempo real, qual é a lógica da planilha? Qual é o propósito, além do controle? Além da microgestão? Além da desconfiança disfarçada de processo?
A Verdade que Não Contam
O controle nunca foi sobre o projeto. Foi sempre sobre você. O Agile diz que confia no time — mas cobra comprovante de cada minuto. Pede status diário. Pede avanço no Jira. Pede sprint report. E no fim, ainda pede que você declare o que já declarou, por outro canal, pra outro propósito. Como se fosse um réu prestando contas. Como se o seu trabalho fosse apenas um registro contábil. E se você errar um código de atividade, vai ter retrabalho. Se esquecer um dia, vai ter cobrança. Se escrever errado, vão te chamar na reunião pra “alinhamento”. Tudo isso enquanto o board está cheio, o time está sobrecarregado, e você mal teve tempo de respirar durante o mês. O processo diz: “autonomia com responsabilidade”. Mas na prática é: “autonomia até onde o Excel permite”
O Grito Engolido
Você já sentiu vontade de gritar olhando pra tela da planilha? Já se perguntou se isso faz algum sentido? Já teve que mentir no apontamento porque a tarefa real não cabia em nenhuma categoria do sistema?
Essa não é só uma burocracia. É o sinal claro de que o sistema não confia em você, apesar de todos os discursos contrários. É o sintoma de uma cultura que prega a colaboração mas pratica o monitoramento constante.
E o mais absurdo? Ninguém questiona. Porque questionar o processo virou ameaça. Porque o silêncio virou parte da sprint. Porque todo mundo finge que faz sentido. Porque ninguém quer ser o primeiro a dizer que o rei está nu.
Se temos Scrum Master, PO, Jira, sprint report, review, retro e cerimônia pra tudo… por que ainda precisamos preencher uma planilha de horas?
Será que, no fundo, a planilha é o último elo do microgerenciamento? Será que ainda estamos presos a uma lógica de produtividade de fábrica, onde tudo precisa ser quantificado até o último segundo?
Ou será que o desenvolvedor é o único profissional do time que ainda precisa justificar sua existência a cada mês?
Se o Scrum Master tem tempo pra evangelizar o board com post-its coloridos, por que ele não pode consolidar o apontamento do time? Por que o desenvolvedor, que já faz o trabalho técnico, precisa também cuidar da contabilidade emocional do projeto?
Não Deixe o Mar te Engolir
O nome disso não é agilidade. É sufocamento processual. É a ilusão da autonomia servida com gosto de controle. É a liberdade de trabalhar — desde que você registre e justifique cada segundo vivido.
No fim do mês, a planilha não mede produtividade. Mede resistência psicológica.
Como Chorão cantava: “Não Deixe o Mar te Engolir”
Este artigo é baseado no prólogo do livro “Agile: A Mentira da Indústria de Software”, uma análise crítica e visceral de como as metodologias ágeis foram sequestradas e transformadas em um produto comercial que frequentemente prejudica aqueles que deveria beneficiar. Se você se identificou com estas reflexões e deseja uma análise mais profunda sobre como chegamos aqui e o que podemos fazer a respeito, o livro completo está disponível nesse link aqui.
Não é mais um manual sobre como implementar Scrum. É um manifesto para desenvolvedores que sentem que algo está profundamente errado e buscam validação para suas percepções e um caminho para recuperar o significado em seu trabalho.
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